segunda-feira, 2 de maio de 2011

Vielas Dramatúrgicas

Elocubrações rodopiantes sobre a peça Devassa da Cia dos Atores

A Cia. Dos Atores apresenta sua nova montagem em repertório: Devassa. A peça apóia-se no texto literário para a criação – no caso específico A Caixa de Pandora, do dramaturgo alemão Frank Wedekind -, e, ademais da constante polêmica a respeito da interferência e peso do papel do texto literário na criação teatral, o espetáculo consagra-se na benesse extraída da apropriação dos conteúdos tratados.

A importância texto literário para a criação teatral é posta em cheque já na primeira metade do século passado, quando o poder do ritual físico da encenação passa a ser reivindicado como particularidade única e capacidade exclusiva das artes cênicas. Após muitos escorregões, patinadas e revolteios, tais reivindicações se efetivam quando Hans Thies Lehmann faz um levantamento geral das tendências cênicas contemporâneas e abraça em seu arcabouço estético as práticas consagradas do novo tempo que ele denomina de Teatro Pós-Dramático. Aliás, não à toa, Lehmann é discípulo de Peter Szondi, mesmo geniozinho responsável pelos dois abarcamentos anteriores que definiram os moldes e trilhos pelo qual o teatro vem serpenteando desde sempre – A Teoria do Drama Burguês e a Teoria do Drama Moderno.

Ora, o pós-drama, como se deveria saber sem tantos mal entendidos, não exclui o texto da encenação. Apenas julga agora insuficiente sua posição canônica e seus moldes aristotélicos para a competência da cena. Podemos notar nisto o fenômeno sintomático da própria escolha do termo: pós-drama não só não exclui o drama, como toma o mesmo como referência central.

A Cia dos Atores sabe o que está fazendo. Peças anteriores como Melodrama, “resultado de dois anos de pesquisa, se dedica a apresentar um panorama do gênero melodramático como referência cultural, com situações turbulentas e diálogos pomposos”. Ora, após florear e esmiuçar o romance de folhetim, é por acaso que o título escolhido para a nova peça “Devassa”, seja justamente um arquétipo desse tipo de drama?

Durante os rijos anos da ditadura, época chave para a disseminação de tal tipo de romance, a “devassa” era tipo comum e sempre presente, mulher dominadora de homens, típica prostituta, que, por sua conduta tida como desviada e viciosa era posta de fora da moral burguesa, não sendo sequer barrada no crivo opressor dos censores. Já era uma entidade perdida (diferentemente da “amante”, que, na sua condição de mulher de família e ameaça de alta periculosidade da instituição familiar em si, embora análoga à “devassa”, era excluída sem mesura pelo risco oferecido à casa da burguesia classe-média).

Mas retomemos: tendo a dramaturgia como alicerce principal, Devassa se articula aos poucos em nossas mentes. Vagando pelos meandrinhos enigmáticos da dramaturgia esfacelada, apresenta-nos cacos de situações incipientes e um quadro geral nebuloso que, aos passos cautelosos, conseguimos penetrar à turva e remontar por nesgas com um pequeno esforço de pensamento.

Contudo, não é no êxito da manipulação dramatúrgica que se dá o bom resultado da peça, senão em toda a execução. O espetáculo não é radical e segue mais ou menos por caminhos já trilhados anteriormente nas artes cênicas. Isso não é um problema, perambular por paradigmas já estabelecidos é por muitas vezes mais prazeroso que arriscados experimentos mal sucedidos. A conjugação entre um trabalho de ator robusto, a perspectiva do tema que não é superficial e uma coordenação diretiva eficaz traduz o trabalho bem realizado.

A apropriação é uma palavra chave desta cia. consagrada de atores experientes. O domínio intelectual do tema – outro sintoma, o programa da peça discorre livre e amplamente sobre o tema geral da peça moral/gênero/sexualidade - não transforma a peça num desenrolar de cerimônia sisuda para o deleite cabeçudo da massa intelectual pensante, senão a faz vagar com liberdade sobre a elaboração da peça, pondo em prática um exercício eficaz de criação coletiva, onde cada pessoa pode contribuir para o levantamento da cena, transferindo toda a responsabilidade - antigamente exclusiva do texto - para a lógica interna e para uma coerência que depende exclusivamente da própria montagem em si.


Rogê