quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A terrível abstração abissal

Iniciamos a pintura da idade moderna com uma ambiciosa pretensão: eliminar-se os romanticismos voluptuosos dominantes até então, e persuadir os apreciadores da arte a uma nova necessidade. Se a representação literária já não serve mais à pintura, deixemos pois, a natureza para Deus e a literatura para os livros e vamos além. Passamos daí, dos quadros do século XIX para as pinturas desta grande e terrível senda abismal que denominamos, então, a pintura moderna.

Começamos, pois, munidos de boas intenções, até. Uma vez que a representação fotográfica já supera a representação da vida tel quel, que caminhos seguiremos com a pintura? Temos então, duas alternativas plausíveis, concomitantes entre si: Uma, apoiar-se no que só a pintura é capaz de nos dar - as linhas, os traços, a tinta, o suporte bidimensional enfim - e superar as novas tecnologias representacionais (fotografia) em seu ponto fraco. E qual seria ele? Ora, a fraqueza da captura fotográfica reside em suas proprias condições estruturais: seu diafragma possibilita um visão unilateral da vida como ela é. Assim sendo, independentemente da situação capturada, por mais sublime, mundana, bela, tenebrosa ou ordinariamente cotidiana que seja, apenas conheceremos um lado de suas histórias.

Nisto se dá a ascensão cubista (e a partir daí, veremos, a primordial causa da terrível queda da pintura moderna): a manipulação sobre as dimensões do objeto nas mãos do pintor, capturando sob seu domínio a representação de todos os pontos de vista, juntos, ao mesmo tempo, agora, já, no quadro.

O que assistimos a partir de então, foi uma pretensiosa evolução na pintura. Passamos a eliminar a terceira dimensão, as cores, a tela, as pinceladas e pasmem, sim, eu juro, o pintor. Entramos num terrível processo de extração de suquinho semiótico das obras de arte.

O terrível engano, senhores, residia nisso. A "teoria" que, inicialmente, deveria talvez, enriquecer, ajudar, no mais do mais das vezes, apoiar uma pintura, passou a ser esquadrinhada de forma essencial e integral à ela. Desta maneira notamos, na idade moderna, a pintura não é auxiliada pelo processo racional de seu entendimento, ela é sua vitiminha indefesa. Sem o texto que subjaz, não somos capazes de apreciar a obra de arte moderna. Diante do quadro, repassamos o texto.

Graças a isso, hoje, somos incapazes de diferenciar uma obra de arte, de um objeto cotidiano funcional, digamos, uma taça com água, por exemplo. Seremos capazas de analisar o contraste da translucidez do vidro, com a translucidez da água, suas formas arredondadas em perpendiculariedade com os raios de luz do recinto e "mimimi" para os mais debruçados, enfim, chegamos a um ponto no qual deificamos o discurso Duchampiano. Marcelinho, que parecia tentar nos cutucar de sua sutil acidez, não nos tocou onde devia. Analfabetos funcionais que somos, nós, os homens modernos, ao invés de captar a ironia de Duchamp, tornamo-la verdade absoluta.

Triste fim, senhores. Perdemos o mysterium tremendus, o mistééério, e nos finais dos torutosos caminhos claudicantes da arte moderna, rogamos praga no caráter literário da pintura e terminamos vítimas do discurso racional, no qual a arte pode existir em qualquer coisa, ou não existir. Contato que haja, atrelado à mesma, o execrável texto.

Senhores, jamais esqueçamos das duas faces do todo, pois nisto reside a mais rica, grande e ingloriosa lição das vanguardas, senhores. Elas falharam.

Rogê