quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A temática do leva-e-traz


“Problemas pessoais não são resolvidos geograficamente”

CORTEZ, Diego Ribeiro.

RESUMO
O seguinte artiguinho delineia humildemente a recorrência de fastidiosa e serpenteante temática presente no cancioneiro popular brasileiro, fenômeno ao qual cunhamos a fama de Temática do Leva-e-Traz. Tal lugar comum concerne, por sua vez, certa insatisfação não explícita com a condição do Homem contemporâneo, que busca de modo metafísico e metafórico - jamais expondo claramente suas motivações - mover-se do lugar em que se está, e, na maioria das vezes, por meio de juras platônicas, tomando carga de suas já parcas forças, pretende carregar ente admirado de cá para lá, buscando nisso, uma resolução concreta e efetiva para seus desentendimentos interiores nebulosos

ABSTRACT
The following tiny little article humbly delineates the recurrence of this tedious and meandering themes in Brazilian popular music, a phenomenon which we call the issue of Take-and-Bring Themathics. This common place concernes, in turn, certain not-explicit dissatisfaction within the contemporary human condition, that searches in a metaphysical and metaphorical way - never stating clearly their motivations - to move from the place where they are, and, in most cases, based on lovely platonic promises, taking charge of their already meager forces, intends to carry the admired being from here to there, looking at it, a concrete and effective resolution to their fuzzy-interior disagreements.

Palavras-chave: leva-e-traz; lugar-comum; pulsão-locomotora; transposição mnemônica

Cremos necessário apenas um desleixado esforço de memória a fim de constatar a abundância dos exempla, ceva gorda no presente trabalho, facilmente detectáveis por distraída busca. Não poderia ser diferente, dado as proporções e a qualidade da nossa música popular brasileira, encontrar as recorrentes manifestações do que pretendemos conceitualizar como sendo: “a temática do leva-e-traz”.

Sabe-se desde tempos mui remotos que as plataformas artísticas, em especial a poesia e a literatura, independentes de seus atributos tecno-formais, lambuzaram-se fartamente de objetos-comuns. Não trataremos aqui das materiazinhas elevadíssimas cantadas por Homero - por não se referirem a vida cotidiana, chalpinhada por nós e à milhas celestes dos deuses -, tampouco das desgraças que levaram Édipo ao exílio, por serem ainda assuntos graves e de muitas precauções. Sendo partidários das preocupações profanas e das orações subordinadas, amiúde encarrilhadas (como podem agora notar) e ainda, recreados com o que há de mais chã na elocução dos gêneros populares, poderíamos levemente retocar este formidável artigo com as manifestações sintomáticas na lírica alexandrina. Não que este seja o tema do presente trabalho, mas que serve-nos de base para explicar o conceito de lugar-comum.

Safo de Lesbos nos regala variegadas notas sensitivas frutos da tópica amorosa, o eu-poético se definha, revelando as atrocidades do amor através de sintomas físicos. A simples aparição do objeto-amado diante do paciente amoroso causa neste a perda da voz e calafrios que o percorrem da cabeça aos pés (ainda que mais fortemente na região abdominal), além das reações iniciais de taquicardia. Assim dado, um rápido percurso pelo panorama literário universal seria suficiente para encontrarmos a recorrência deste mesmo procedimento em outras épocas e estilos variados. Basta olharmos desde o berço da cultura ocidental até os últimos bons romances dos quais o homem foi capaz. À exemplo de situar-vos no presente, vejamos “El amor en los tiempos del cólera” de Gabriel Garcia Marques, onde o amor é confundido com os sintomas da cólera, justamente por convalescer o amante mediante os sintomas do “enamoramento”, essa verve mágica e doentia que submete o indivíduo às primeiras manifestações do amor. Assim sendo, se brevemente nos determos a cantiga trovadoresca, lá estará, sempre presente e muito solícita, a chamada “coita amorosa”, ou seja, os sofrimentos dos que padecem desta ambígua sorte. Exemplos não faltam a fim de denominar apenas um dentre muitos, disso que os especialistas cansaram de apontar como sendo lugar-comum na poesia e que, de outra forma não poderíamos aqui denominar.

Não que seja o amor necessariamente um lugar-comum, pois o amor esteve e sempre estará presente em todas as coisas vivas, porém, é a abordagem que dele se faz nos exemplos acima que de fato os enquadram num mesmo tópos. Ora,há mil maneiras de se tratar o amor, mas aqui em especial, trata-se da representação do convalescente; Florentino Ariza em espasmos biliares e noites insones; Jovem Werther chafurdando e descobrindo-se agente único do sereníssimo espírito romântico. Em suma, arquétipos deste lugar-comum já vimos em demasia, e creio que ainda veremos muitos mais, pois a temática do leva e traz é tão óbvia e ululante que nós nem conta nos damos quando nos deparamos com ela.

Doravante, a guisa dos enfermos descritos acima, a temática do leva e traz é também lugar-comum, mas que procede de tradição mais atual, e em campo específico, sim! A música popular brasileira...

Não nos cabe discutir o que é, de fato, a música popular brasileira, cabe-nos apenas observar que não se trata somente daquelas cançonetas mais saudosas, nem daquelas dos anos do estereofone, mas sim elas todas, independentes de conterem ou não recursos estritamente nacionais. A música popular deve ser entendida aqui pelo seu próprio adjetivo, ou seja: a música fruída pelas massas,de todas as classes e sem distinções de qualidade segundo vossos respectivos juízos.

Pois bem, feito o rodeio e considerado os exemplos, a temática do leva e traz se manifesta na canção popular assim como panfletos em colégios eleitorais quando véspera de votação, existe em tal abundância que este singelo trabalho não poderia dar conta de abarcá-las todas. A temática do leva e traz, grosso modo, é simplesmente a necessidade de locomoção de um ponto ao outro, explícita ou não, e quase sempre motivada por desconhecida causa, mas que implica, todavia, em transportar-se a si mesmo (caso o sujeito cancioneiro esteja em primeira pessoa), junto ao objeto ou pessoa cortejada. Com que fins, e o motivo impulsionador desta resolução em deslocar-se de um ponto ao outro, por ora são temas mais específicos, que a fim de se evitar generalizações, não entraremos em maiores detalhes. Que fique óbvio para nós a insatisfação do homem contemporâneo, e a insatisfação dos que viveram também outros tempos, pois sabemos: o homem é ser esdrúxulo e obtuso, e seus maiores segredos não são passíveis de serem integralmente desvendados. Todavia, convenhamos uma certa insatisfação, grave ou corriqueira, de não nos sentirmos bem em tal ou qual lugar: uma festa chata,um ambiente desagradável, locais de hostilidade fraternal, bairros temíveis etc. É justamente esse o partiprí da temática do leva e traz.

Já em Odair José é possível identificar, “eu vou tirar você desse lugar, eu vou levar você pra ficar comigo...” . Exemplo impecável, onde o sujeito amoroso se encontra tolhido da união monogâmica e busca resgatar a meretriz mediante juras de amor. Aliás, esta espécie de resgate muito se assemelha ao contexto das toadas medievais e da tradição oral da mesma, onde frequentemente figura como protagonista o cavaleiro, personagem incumbido do resgate da princesa, tomada a modo de prenda e patrimônio por criaturas mitológicas, dragões, diga-se de passagem.

É interessante notar os diferentes matizes da qual a temática do leva e traz faz uso para realizar-se, pois esta espécie de lugar-comum é rica em aspectos terrenos e metafísicos. Se faz recorrente as formas profanas e tangíveis, como também a locomoção mnemônica por impossibilidade real em transportar seres concretos ou não. Vejamos a maneira com a qual Herbert Vianna utilizou-se do recurso. Em “aonde quer que eu vá”, o sujeito se vê prostrado na tentativa de recuperar de forma real o ente perdido, no caso em específico, sua finada esposa. Porém,a temática do leva e traz se realiza plenamente mediante a mácula originária da perda concreta, “aonde quer que eu vá, levo você, no olhar”. Oras, trata-se da transposição objetiva re-inserida sob aspecto físico na feição do sujeito, o globo ocular carrega consigo a marca de uma ferida irreparável, mas essa mesma marca fonte da intangibilidade locomotora, passa por um processo de resignificação, melhor dizendo, de simbolização do ente perdido que se revela através do olhar,tornando possível (e transportável) a referência trágica da qual alude o compositor.

À esta locomoção mnemônica,nenhum poderia ser maior causador, senão o amor platônico.É da impossibilidade em captar as benevolências do ente cortejado que o sujeito amoroso acaba por infundir a imagem do objeto na memória. Bem sabemos do que são capazes os indivíduos que foram tomados à rédeas curtas pela faceira figura do cupido, e é faz dizer também os desenrolamentos que isso no sujeito padecedor infortunadamente acarretam. Preso, acuado e inerme, o paciente amoroso acaba por tornar-se refém de si mesmo, e no torpor do acometido sentimento, tateia sofregamente um subterfúgio objetivando a suavização destes efeitos nefastos, mas só o encontra como solução poética, por recurso de memória, recorrendo uma vez mais a temática do leva e traz em vão, intento que, ao fim e ao cabo, não se constitui de fato um paliativo para o entrave amoroso. Este caso em específico pode ser facilmente justificado pela canção do afamado grupo auto-intitulado happy rock, Restart. Num dos maiores êxitos radiofônicos do milênio, a começar pelo nome da canção, “Te levo comigo”, o recorrente lugar-comum é literalmente explicito. Vejamos o refrão: “eu vou te esperar, aonde quer que eu vá, te levo comigo”, temos aqui o arquétipo perfeito, a insensatez amorosa do sujeito interlocutor, utiliza-se da pulsão locomotora, que consiste na necessidade de levar consigo o objeto desejado. Não há êxito na ofensiva, pelo contrário, há apenas pranto, lamento e lamúria. Porém, o sujeito em meio ao desespero só visualiza o mesmo veneno como única cura, e mais uma vez o que resta é o recurso mnemônico da temática do leva e traz, a qual, motivada por amor platônico, acaba escorregando fastidiosamente no charco fétido do melodrama, e a canção acaba por reduzir-se à mero desabafo, o que, no final das contas,resulta um final nem tão happy assim.

Rememoremos o lirismo juvenil nas canções de Charlie Brow Jr, ícone da música adolescente e grande emplacador de sucessos na passagem dos noventa para o nosso vigente milênio. Um dos maiores êxitos do grupo, que posteriormente se tornou vinheta de abertura no seriado Malhação, foi justamente a música “te levar”. Trata-se do mais puro exemplo da pulsão locomotora, entendida aqui por necessidade em deslocar-se levando junto o ser amado. É a partir dessa pulsão locomotora que o sujeito, inconformado em relação à algo, resolve tomar resolução diante de um hipotético problema, “aquele tempo ficou pra trás, eu nunca fui feliz assim, resolvi pensar em nós (yeah!), vou te levar daqui”. Não se trata de pura e simples fabulação, tampouco de seqüestro. A chave do problema pode ser entendida pela simples proposição de que a mudança de ares e a busca de novos lugares aparentemente poderia ser a solução para algum entrave vivido em determinada relação. Melhor dizendo, a pulsão locomotora e, consequentemente, o emprego dela na composição, originam-se de uma aspiração à mudança, mas que, por comodidade ou falta de ingenium, acabam novamente esbarrando-se na temática do leva e traz (Isso apenas reforça nossa tese que busca enunciar uma crescente escassez criativa nos gêneros da música popular brasileira, e de certa forma nos dão mostras de quanto o homem emaranha-se no imaginário contemporâneo excluindo possíveis caminhos ainda inexplorados). Admite-se que os problemas amorosos, concretizáveis ou não, nem sempre estão estritamente relacionados com a transposição dos corpos à nova geografia, mas esta crença, isso sim podemos afirmar, permeiam o espírito criativo de grande parte dos nossos compositores.

É incrível o poder sinestésico da temática do leva e traz. Algo nos leva a pensar que a utilização de tão surrado recurso funcione positivamente segundo a recepção estética coletiva. Isso quer dizer que independentemente do gênero em que elas abundem, parece haver uma propensão a sua utilização, desprovida de um vínculo formal em específico, o que as tornam passíveis de serem agrupadas num contexto de maior abrangência, ou seja, a cultura e o imaginário Pop. Não obstante, parece-nos facilmente detectável o fato dos grandes sucessos radiofônicos aqui utilizados como exemplos se harmonizarem em consonância com a temática leva e traz. Todas elas foram de grande sucesso, e não apenas elas, mas outras que por motivos óbvios optamos preterir: o sertanejo de Victor & Léo e Zezé di Camargo & Luciano , a genialidade de Lobão , e até (pasmem), a música gospel do empresário-missionário R.R Soares .

Agora já adentrados no assunto, acreditamos que o estimado leitor esteja buscando e obtendo êxito na matéria aqui formulada, e não era para ser de outro modo. A temática do leva e traz é lugar-comum, simplesmente o recurso poético mais amplamente empregado nas composições da nossa musica popular, tanto que não foi necessário fazer referências a críticos e especialistas da ordem a fim de vos explicitar a óbvia matéria segundo juízos mais sofisticados, pelo contrário, o modesto artigo pretende apenas trazer à tona algo que já é de todos conhecido, mas que talvez ainda não haviam sido trabalhados e conceitualizados de maneira ousadinha, da maneira como foi neste deleitável trabalho. Em se tratando das novas perspectivas, praticamente não as temos, há um processo cíclico e de constante perda da referencialidade histórica. À medida que os anos passam, é cada vez mais rasa a cova em que buscamos nossas influências, por isso,deixamos de lado muito do que já foi feito, e temos preferido beber as águas de fontes mais próximas, as que nossos braços alcançam sem ter de se estenderem em demasia. Cabe-nos ressaltar ainda, que a disposição criativa para as novas diretrizes da música popular, estão a milhas e milhas distantes dos portos amenos. Estamos sim, em meio a violentas rajadas de ventos e fastidiosas borrascas marítimas, em atroz naufrágio, desprovidos de bóia e bússola,estamos,no melhor dos casos,meus caros, numa sinuca de bico!

Índice Bibliográfico

Charlie Brown Jr.In: Te levar

Lobão.In: Vou levar.

Odair José.In: Eu vou tirar você desse lugar

Paralamas do Sucesso.In: Aonde quer que eu vá

Restart.In: Te Levo Comigo

R.R Soares.In: Deixa a fé te levar

Victor & Léo.In: Tem que ser você.

Zezé di Camargo & Luciano.In: Vou levar você.




Resumo e Abstract
Rogê

Artigo em si Raton



Um comentário:

  1. Difícil dizer o que há de melhor no texto: seu conteúdo ou a própria forma. Também honrado e agradecido fico pela citação quiçá digna de utilização perante primorosos encadeamentos sintáticos, semânticos, sociológicos, sem solucao se sair sem sonhar só seis séculos seguidos. Ops, empolguei nos 'esses'; enfim, aonde que que eu vá... (lol)
    Abraços ternos (e cintos),
    T. Durden ('s back!)

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